Alguma Coisa

adriano menezes

Enseada

Praia. Passos esquecidos, o ar veloz,
beira do mundo e ruínas históricas
dos seis amores de areia e quer
de novo. A canga acaba nos joelhos.
Impossíveis contas, seios dinâmicos
enfrentando o vento e um biquíni
floral mais céu que água a contaminar
correntes. Um ambulante e seu pregão
solitário. O meu amor inventa-me.

INFILTRAÇÃO



Febre entreposta, de um lado
memória , do outro o número
fora de área. A vida em camadas,
postiçagens  percebidas só agora,
à  iminência do desencontro final
e nada mais certo. No monitor
a face olha dura curtida e infiltrada.
O azulejo precedendo a carne
que vaza enquanto arrisco
diagnósticos para a longa     
noite que virá, sem remédio.
É mofo subindo as paredes
por dentro, ignorando
fórmulas novas e as fórmicas
espalhadas pela cozinha, diques
inúteis para conter o incontível.
Azulejos em verdes arabescos
fazendo fundo para vasos de barro,
úmidos, mofo e a sempre-viva.

PRAÇA TIRADENTES



as pernas cruzadas
ao pé do obelisco - a
pedra aplaina
as nádegas e deixa
explodir as coxas
emulando com
o monumento - sol
cascudo enorme
à esturricar a estátua
inconfidente e a marca
concessiva do short
entre suores e
a sombra de uma
sobre a outra perna,
ignorante, alheia
aos olhos do chofer
no carro invisível,
erguendo-se, empedrado.

Mútuo fátuo maçarico em chão preto


~
Mútuo fátuo maçarico em chão preto, último fogo que a terra houve de comer - antes tão intumescida, ora cuspidora desse vermelho bailarino e vingativo, de facas pro ar – o fígado exilado lê a madrugada de nossa ignorância a ofegar no sono triste dos insones, em fundo abismo incestuoso a trempe muscular a arder a pele. Mordo a nuca em meia bunda a arredondar o mundo. Rio espesso por novos veios escarraduras entorna em tez antionírica, corpórea e rude - entre a carne exposta e esticada no bambu de alma notívaga, infiel, ateia e governadora. Sem testemunhos que nos legitimem se há a manhã a acontecer as coisas, tristes morros ornam nestas mortes enfiados. Bichos de sangue grosso evadem por artérias quentes, tenras e o avesso vulcão. Há coxa delimitante e joelhos esfregando a gleba em beterrabas de rastros naturalizados, entanto, invisíveis aos pássaros sacros que voam fora do mundo a segunda natureza serrana do que éramos pregados ao calendário. Beijos houvera em vinte e cinco de março de dois mil e quinze, não se pode saber.
~

VIA EXPRESSA

'
no rasgo de luz da
janela a estampa
escorregadia da fuga,
na cara posta ao vento
a ideia torta: eram
vida as casas rápidas?
(entre os favores
que a memória presta
viagens anteriores

por esta fresta).
o coletivo me esquece
pela cidade e morde
a língua nesse entorse
que a rua entorpece.
o vento a contradizer
os cabelos, penetrando
em razões do tempo
o que era pros olhos
faz ver o desfile gomo
a gomo no mergulho
dos postes. era corpo
e é agora paisagem,
suja (circular) paga! 
o carbono recompondo
o caule cinza dos corpos,
as encardidas canelas
e o verbo encarnado;
resignação dos bustos
pela praça adulterada
a encharcar de humanidade,
espanto e granito minhas
pernas e carnes retroativas. 
uma coisa quer abrir a porta
andar sem rodas sobre o
tempo, as rosas roçar o
vento por dentro e no fundo
toda a roça é piquete.
um giro lerdo de juntas
tácteis e processuais por
dentro do esbarrão faz
um gesto no corpo que
já principia ser ilha,
veneta sangüínea, degredo. 
entornado no itinerário
parco em que me vejo
ver, anda essa luz em
rasgo traiçoeiro, como
a marcar meus anos nos
portáteis losangos da
pele embaraçando os pêlos.
à espera de visão mais
funda mexo o corpo e durmo
nesta câmara cambiante,
revelando o animal diurno,
travesti na hora ordinária
posto passos de albatroz
apeando na praça sete,
trancafiado na própria
andadura que ao bicho
remete, e o sol ilícito
diáfano vulgar transludio
varando a forma trôpega
e suas postiçagens caídas,
súbito enxaguadas sobre
a fôrma sem textura, quase
árvore e dubitativo da vila,
da nave e seus archotes e 
pensares quase evidentes,
metro, quase neutralidade,
meio boteco, quase braços,
ira congelada dos transeuntes
e as leoas banguelas da estação.
eram vida as casas rápidas?
o vermelho busão enjambrado
vai permitido hospitalar
adentro, afora meio am
bulância, meio três tiros
na costela, meio irmão das
vans interiores, anel
rodoviário, administração
de tanto a tanto por tão
pouco metendo a cara alfredo
balena adentro, hps afora,
previdência, andradas, baleia,
quase hóstias nosocômicas.
quase céu. meio azul, carne
e um asfalto absorvente dupla
face, esconderijo e existência
da rua. essa vida de chão de
armários submersos, imã
ocular, decote a céu aberto,
negaça, olhos e indigência.
ferro-velho, íngua, desmanche,
morada e vigília, os joelhos
estreitos, havaianas, ossos
e barbicha grisalha em dáblio,
cometendo ainda o requinte
da romãzeira em flor o cafuá.
o chão batido testemunha
axilas de aviões baixos em
vôos indiferentes, sujos,
comuns sonoros suvacos.
a cidadela aríete adentro
cotovelo afora, remendo,
prótese, conserva e contorno
adentro, margem direita
afora, branca figadal
estanque adentro, corte
e costura, lâmina e osso,
retalho, outdoor, martelo
e tapume, como pára-lama
em cor diversa e o corpo
resto em cinza marginal
durepoxi pus corcéis e
carretas, acostamento.
(o sol a nos rachar parelhos:
cores de lata - vivos, o poste
em riste - destino, erisipela 
e atalho encurralando
as carenagens a bater orelhas).
ombro a ombro dentro da 
curva e o emparelhamento
dos vidros, o envelope kodak,
os nós do dedo arrastando
a lágrima materna, a imagem
posada, enfiada na beca preta
emprestada pra inútil foto
do riso no moreno menino.
o emparelhamento da vida.
andar a pé, fixo pescoço, 
ignorar o emparedamento da
aldeia, a curra ancestral.
na mão uma garrafa oca
e seca por fora, é minha
carta e desespera, é signo
de morte nalguma vergonha
dessas serranas e aflitas
que são passadas a limpo,
caso conspirado por dentro,
quarto dos fundos, empregada
comida na despensa e morro
à cima, e silêncio e fome. como
diz o outro, o coração bate
à toa, cuida que os dias
são iguais feito tabuleiro
de dama ou uma reforma
no largo, percursiva
britadeira, piche. azuleja
seu coração e espera talvez
a homilia seca de uma boca
mesmo abrasiva, risco de
fósforo, cimento grosso
e sem agudezas de faca
corre no riso de uma broca
riscos no ar, de esperas de
esfregas, ranhuras e joelhos
penitentes e de quatro.
hidro vassoura, lava a jato
na calçada descalça sob céu
e bermudas de coração
eucarístico. atravesso as
casas rápidas como a vida
a parede e a massa corrida.
o velho de bolsos costurados, 
carnês, velhacos no instituto,
astúcias declamadas cabo a
rabo na madrugada da fila.
água que não há, sítio
seco citadino rego sujo,
vazamento de notícias,
margens asfálticas e calor.
penico amparando estrado,
gávea cega, poste e cabra, 
vazamento de gente e corte
de luz em feixe acidental,
vida em circunstância, feito
encontro casual sem assunto
e muito passado debaixo dessa
ponte, cataratas na catraia.
o complexo, a lagoinha, seca
mas despejante contumaz.
a veia podre bebe e arreda
entre a simetria cimentada
agulhadas de dejeção e rush,
no entanto o rito é o circuito
expelindo freadas, draivins
fábrica de torresmo, bilhar,
uma chupetiha e três posições 
à sua escolha, taxímetros,
cabine, insulfilme esporrado,
os disfarces de todos nós, os 
nós atados dentro da fuga,
exposição, fundo de bar,
haverá a alma que topa tudo.
no meio do peéfe executivo
viúva e tração ela grita pela
ordem no papelão das crias,
governando o semáforo, a
porta frouxa do parador e
cherokees caipiras do sion.
ter os olhos na flor mista
de decoro e vidro em seu
vestido de pedra andante,
compasso, valsa e desenho.
mítica como um desejo puro
como coxas que não se 
excedem em sê-las, são
coxas sob pele que dizem:
limite. pujança é seu selo.
a fiel melancolia dos cães e
gaviões a ombros com urubus
ciscando o plástico dos dias,
alusão a ruínas maiores e
o desmanche do abraço aqui,
onde o horizonte é ideia
e a sede aventura diária.
(Via Expressa, Adriano Menezes. Scriptum Livros - Belo Horizonte)
(Guitarra: 
Guilherme Granato)

VIANDA




A criança agasalhada
vem para mim como
palavra jamais escrita.
Engatinha para meu
cercadinho onírico.

Sou só, figura posta
pendurada em seus ossos.
Corte ambulante a comer-se
olhando o bairro, o mundo:
máscaras carníferas
em linguiçais sem fim.

A mãe de seu menino
corta-lhe o cabelo, a
jovem mãe. Entro nos Correios,
só há lá outro velho. Eu
olho surpreso, atravessando
épocas, a goma arábica.

Preciso estar atento aos prazos,
pagar as multas, retribuir
o cumprimento do dono do bar.
Já não há dia para ser, a
sombra é fraca, o pensamento
muito junto ao osso.
Frida, a vertebral ajuda-me
a lembrar: dorflex, antes da casa, dorflex.

SOLIDÃO

Saber que provavelmente
a lembrança do homem
ventríloco que desembarcou
na estação naquela tarde
e que meu pai levou
para o armazém da Rede
e reuniu as crianças
e sobre a enorme balança
ele acomodou o boneco que falava
sobre o joelho e meu pai
também me acomodou sobre o joelho
entre engradados de fiação
e galinhas que o Seu Geraldo despacharia para Arantina
e o boneco falou calúnias acerca de mim
e colchões urinados
e que quando eu digo armazém da Rede
quase ninguém já sabe o que é.

MUDA

'

Depois ela disse que sentiu
uma coisa ruim
ao chegar a Ouro Preto .
Eu senti uma coisa ruim
quando ela disse. Queria
então mulher e cidade .
Eu devia desconfiar,
a escura nuvem sobre a casa
a perturbava sobremaneira,
e o passeio estreito, e as ladeiras,
talvez a falta de girafas
no Padre Faria ou
a desistência das flores
com talidomida que nos olhavam
míopes do jardim
que ainda não havia...
Se perdeu de minhas mãos.
A cidade continua comigo:
mofando livros,
avacalhando meus amores,
restituindo-me a asma.
















Suplemento Literário Minas Gerais - Nov/Dez 2010

DO AMOR

'
Reconheço suas partes
ao fechar os olhos mas
as perco se prendo o fio
breve da tarde que avança

o amor relâmpago
é reminiscente, não
atua onde estou

sua pele branca
em minha boca
os cabelos amarelos
a língua vermelha
e a cicatriz sem cor
que risca a coxa,
jogam juntos neste
repasto pretérito

aqui, abolidas, as horas
vão morar no corpo.


'

O Nº 1













'

O peito faminto e algum
problema na expressão
o precipita no mergulho
quebrando o ar, um tapa
na lua, ponta de ponte.
Contra ladinos anjos,
tapa de luvas entreabre
a geometria do rebote, o
bote então na cruz das
pernas. O palhaço avante
solto poeirando solo e baile
e de novo a parábola do
arqueiro tranca meta, mas
do beco lateral (meu deus,
o que ele vê é o beco) vem
o solo de baixo do verdugo
zagueiro atrevendo cego,
sem asa e sem ego....
o torpedo deslemado voa
magno. Na meta a coragem,
o peito, o abraço retumbante.


Pelada poética - Copa de 2006 - Scriptum Livros

INQUILINOS DO ROSÁRIO






















Sabe que haverá festa,
é sacudida pela tosse
antecipando no peito
o estorvo que o corpo
vive na mistura das horas.

Esquenta o xale no batente,
recusa bolo e café, diz
que tem gastura e que o
o aluguel não vale o incômodo.

O movimento da cozinha,
a ignorância dos bichos
que morrerão no terreiro,
o exílio na janela, o infinito
corredor cujas tábuas viram

a vida passar e ora perdem
a discrição, na severidade
do tempo a pé em suas costas,
delatam os passos da espera
que reúne velha e fresta.


'

CRISTINA

'
pude ouvir seu corpo
seu sangue nórdico andar
suas dobras e maresias,
meus limites baldeando
vapores cambetas à beira
da pele, empurrando pedras
de alheamento e entrada,
pêlo, sal, coração abrasivo
circunstante e o azeite
corporal refazendo a rota
lisa sem pega pras mãos,
fartura, esguicho e coisa.
água na cintura e sombra.
crucifixo na parede azul
do mar sem cabeceira.


'

ESTIO

'

antes da armadilha
de água nos ladrilhos
e desse descanso no
alpendre,
enquanto bueiros
prorrogam a chuva,
constatava o mundo
de lixo e diluição
da cidade morna.

o tempo aqui e ali
empoçado, escorre
em veios lembradiços,
decretam rumos, agora
que sou excesso.

resisto ao torque das
esquinas dobrando
a paisagem para você.
piso reto irrefletido,
fora o fato desses olhos
nada me finca no tempo
ou me embarca nessa
enxurrada.


'

CALIGRAFIA

'
Passo de ônibus
pelo Arquidiocesano
(haja igreja em
Ouro Preto).
Alguns fazem, ainda
que em desequilíbrio, o
sinal-da-cruz .

por outro lado,
o meu tê sempre foi
uma simples cruz, sem
rebuscos. Por isso escrevo
ateu com um crucifixo
no peito da palavra.

Acho que ninguém
pensa que cruz
é uma máquina de tortura
com dois tês fincando
o pecado nos transeuntes.

-

NO MEU CASO




Lembrar você no meio do dia
é lembrar a carne e um espírito
meu fazendo raso o peito.
Desvio teimoso, alma
assoreada despejada curta
no encontro arenoso da lida
real mista no dia fantasma.
Ouvir a voz de deus melando
os quadris como um terceiro
lábio propondo a fala em braile
diante da porta de ferro e a farpa
delirante, fenda pingando
entre estranhos ares: o corpo
da mulher de deus estendido
no silêncio negro do amor
sem mim, condicionando
o gancho podre dos encontros
a outro beiço lambedor. 

2

O corpo de contato
é raso e de peso circunstante,
anda sem luz
dentro da noite
e jamais encontra o tom
da música de equívocos
que o vento mistura
na reserva dos sentidos.
Vestido de ideia
sopra a pele, a trempe
que improvisa fúrias


3

E a crosta que permeia
a cidade,
lisa e postiça
cessa no calçadão, ali
espera um oceano, em linha,
onde estendo
o sem entendimento,
desperdiçando a tarde
e o primeiro ímpeto de mergulho.
Vieses e trote em
falsete na areia.
Horizonte liso
sobre crácas.

4

Na madorna
o som distante do jogo
no radinho repõe em mim tudo
que existe. É uma hora
crédula arrancada do peito.
em pinceladas dominicais,
facadas na rede, no tempo.
Minha carne amarrota
a fina membrana
que emenda o corpo no dia.





-

PORTO (INFINITO)

'

debruçado o corpo
esvai-se em gomos
mesmo ainda sendo
encosta a forma minha
de sentir as coisas

o morro fabricando
umidades sensuais que
vão pelo mineral pétreo
compor esse dia preso
ao dúbio mar dos serranos

a alma vê o rio
e não haverá bojadores
para esta humanidade
que quer ir por águas
que se quer ainda cais

(O achamento de Portugal - Anone Livros - 2005)

-

EPIGRÁFICO

'

salvo as implicâncias
que a realidade
empurra e traduz
em opacas transparências
algo material
conduz por superfícies
um corpo talvez aéreo
fabricado à saudade
e que logo já é
minúsculo gado
que estoura da hora
e segue furando o ar
de dois mundos
mudos através do dia


(Os dias - Editora Scriptum - 2004)

ESTAÇÃO

'
guardadas na moldura
as pedras aguardam
o tremor, dormentes, as
que sobram pirambeiram

algo negro respinga
entre o ferro e o seu
primitivo natural

por baixo a terra é triste
e de um medo acostumado

a cicatriz sempre renovada
abraça distâncias
tolerando a prótese
para a força prevista, arrasadora

parece o próprio tempo é seu suporte

salvo a plataforma
ainda em espera
o sino sendo ainda
só silêncio e forma
entre pessoas
tudo é ferro e perda
pedra e pouco

mesmo à iminência
de minha máquina

(Os dias - Editora Scriptum - 2004)

SINGER MANFG. CO

'

em seu disfarce preto
o metal ignorado
guardava engrenagens
nos tornos do corpo
ora sinuoso ora frio

iscada a linha descia
à carretilha emagrecendo
o retrós

o tempo revogado
sígnico em seus novelos
é quase retrátil
dano visual
que no desmanche
ficou cheiro

do velho ferro do pedal
do pé de mãe
do pano

(0s dias - Editora Scriptum - 2004)

TARDE

'
a esmerilhadeira
fura aguda o tempo
rouba a tarde do silêncio
preenchendo de faíscas
pensamentos ausentes,
metais complexos
distraem o transeunte
mental.

o fogo a espirrar-se
faz o incômodo
mais que sonoro,
espaço indefensável
no jogo dos sentidos:
exposição, desguarnecimento,
certeza doente
de um cúmplice à espreita.

passo batido
firme como os homens
que não duvidam.

ando muito
para ainda estar
nos domínios
da máquina
que não pára
de existir.


(Os dias - Editora Scriptum - 2004)

CÓDIGO MORSE

'
no seu silêncio abstêmio
sob o sino da partida
dentro do tempo e atrás
do telégrafo, o pai.
ferroviário de soslaios
e linhas multiespécies,
decifro 10 anos de morte
por seu morse

(0s dias - Editora Scriptum - 2004)

A CASA

'
enquanto ossos rentes
a construção esfriava
pairavam em si quatro
distâncias, eram gentes.
conquistou a própria pele
o claro e escuro escudo
que a tez da parede expele
a riscar no corpo o futuro
sem que a sede revele
naquele espichar das partes
quantos metros de tempo
e secura a rota repele.
mistérios na mobília
pesada de épocas
demorosas impávidas
a testemunhar a família.

(0s dias - Editora Scriptum - 2004)

SAFÁRI

'
cores que desmaiam
em mim e fogem

couros pendurados no espaço

olhos que vão
às fraturas da parede

extraindo a patente
única e permanente
do seu esqueleto
de tempo

um bafo se enfia
na proximidade

sinto
pelagem e presa

junto ao relógio
espero a fome da fera


(0s dias - Editora Scriptum - 2004)

PÁRA-BRISA

'
o cachorro aberto e morto
é aquecido no asfalto

num deslize
um esquecimento
anda no automóvel

ponho parentes
à escorrer
no campo das aquiescências

olhares velozes
me devolvem ao clã
de sangue

cadáveres que andam
por mim a fora
dentro da tarde


(0s dias - Editora Scriptum - 2004)

MANHÃ DE MAIO

'
aproximar o corpo do ânimo
propor um movimento além
da rede e da espera
estar pronto
ciente
da chuva em marcha
sobre o espinhaço
entregar as ilhas
de cerâmica
e terra
das folhagens como isca
esporar na luz úmida
visto o céu que não
me entra















(Os dias - Editora Scriptum - 2004)

VISÃO DO PÁTIO

'
como andar só
pela casa
à procura de eco?

os objetos infestam
o corredor de nomes
e detêm a goela
num precipício

prova que a conversa
engavetada no espírito
já pertence ao tempo, é imóvel
não veste verbo, nenhum gesto.
é labirinto entre as coisas
acumuladas no passo
no silêncio e até na voz
a violar o limite


(0s dias - Editora Scriptum - 2004)

2ª FEIRA

'
escorre na areia
ainda sem liga
a palavra líquida

a letra do poeta
em névoa de bruma
trilha oculta
desliza calma
em seus nervos
de tempo e tinta

a caligrafia de deus
seja reta talvez
e composta de física
musculatura combustiva
ou à maneira dos balaieiros
tecida em teias
de ideias vãs ao léu
ou talvez a caligrafia de deus
seja o poeta à toa
na segunda feira


(Os dias - Editora Scriptum -2004)

CRÔNICA

'
no subúrbio
voa o avião de banda
deixando um risco lá em cima.
cá embaixo, na rua mandarim
o menino bate
a cana no tornozelo
espantando os mosquitos
das perebas
enquanto com zelo mede
a cicatriz do céu.

ORAÇÃO À NOSSA SENHORA LITORÂNEA DO AMOR AUSÊNTE

'
és o meu pátio
impróprio e desalambrado
hiática fatia visível impressa
precisa na retina
de chão dos meus terrenos
táctil móvel imobilizante
és as cercas caídas
no soluço abraço de presa
és o meu signo ático mor
de vida após os montes
entre o mar de nossas mortes
átimas várias repetidas
bendito o corpo
de teu ventre


(Os dias - Editora Scriptum - 2004)

CORTINAS

'
descem cortinas dos cílios
faz chover sobre o ver, vi
vê o empecilho dos braços
pressão solitária unilateral
traz a celebração ao aço.

sobem cortinas dos cílios
faz sol na nossa banheira
sem palavra, goza que
meus braços serão trilhos
tua noção do encontro
anti visão frontal de mim


(Os dias - Editora Scriptum - 2004)

RUA DAS ACÁCIAS, 423

que fechaduras
trancarei para o tempo?

em meio ao
translado doméstico
o amor
com olhos
calados
e mãos
pousadas
no nada

pouca coisa
faz
doer assim
dentro da tarde
fervendo e já congelada
de memória

(Os dias - Editora Scriptum - 2004)

SEGUNDO DIA

esses ares beliscados
pelo guarfo na louça
riscando o silêncio
me despertam para
o estado das paredes
falta de água no filtro
as provisões para um mês
que não vejo no calendário
uma dor nos ombros
e o fracasso de uma
motivação recente.
este canto estofado
entre pernas e miopia
vivia sem denúncias
não fosse o metal lambido
indo pousar no prato
ainda com restos
de arroz e ausências


(0s dias - Editora Scriptum - 2004)
depois de atravessar
as brechas da cortina
o feixe interplanetário
cutuca o tornozelo
do bicho, não sem antes
visitar os falsos cristais
atrás do outro vidro,
revelando vírgulas
que realmente bóiam
no restrito espaço aéreo
entre janela e essas narinas irritadas,
intervêm até no esquecimento
planejado para o dia.
logo hoje, que só esperava
a hora de regressar
ao ofício de trafegar
caixas de lar em lar.


(0s dias - Editora Scriptum - 2004)
calor deformante na pensão
antes solidão que fogo
trinta e oito graus de ninguém

para repovoar-me
abraço velhos símbolos recorrentes

tem um ritmo impalpável
o que me faz suar

há um desenho místico
no que o alheamento
oferece e disfarça
no sobe e desce da barriga
engolindo anos
de pensamentos idênticos
rasurados de tempo presente


(0s dias - Editora Scriptum - 2004)
fórmica sobre aglomerado
cismas de não estar
ou uma estação ter ido
a outra sala
há sobretudo um azul
por fora das horas
que fisga meu desejo de mãos


(0s dias - Editora Scriptum - 2004)
descerá em breve a chuva descrita
nas nuvens mais antigas da minha espera
dali salta um tempo quebradiço
aberto e sem ideias
mas que assim mesmo
documenta que
quando eu olho pro teu rosto
atravesso os dias até o primeiro.



(0s dias - Editora Scriptum - 2004)
ignoro o comando
sua origem o gosto
há o dia andando
ao largo do meu gesto
que povoa a tarde
suspensa em assepsias
vagas, uma voz permeia
o usufruto, balizando a via
espaço branco vaga
pisando orabo do dia


(0s dias - Editora Scriptum - 2004)

VICINAL

o quanto corro
é a existência do carro
enquanto aquilo
que é tempo desmancha-se
refazendo-se em mim
animal conversível
dentro do vento


(0s dias - Editora Scriptum - 2004)

ENCONTRO

estendo o corpo
à sombra do estio
estando quase
ao fio de ti em mim

tinjo de espera
em torno ao simulacro
a franja longe
onde tange o imaginário

PHOTOSHOP

dias encavalados
semana cubista
banguelas ilusões
vôos adiados

- pregada sob as pálpebras
a foto dela
me impede
o sono, o sonho não


(0s dias - Editora Scriptum - 2004)

NOTURNO

é sábado e fora
da minha boca
a tua boca
habita o mundo
é sábado lá fora

foram pisar
o mundo pretendido
por dentro da noite
firmá-lo no corpo

aponto passagens
na estrutura de fumaça
acerca da língua
fenda de teus lábios

moldura e porta
lados do espasmo
a forjar a neutralidade
da taramela

que reúne as madeiras
e tranca o grito em casa



(0s dias - Editora Scriptum - 2004)